Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, cujo vídeo foi divulgado por autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), pode-se constatar que, menos que uma reunião de trabalho para discutir e encontrar solução para os problemas do Brasil, tratou-se, na realidade, de uma conspiração, envolvendo as maiores autoridades públicas para destruir o Estado de direito e a democracia no país. Um espetáculo dantesco, no qual desfilaram figuras histriônicas, deitando impropérios e palavrões contra a ordem democrática constituída, com o aval ou, pelo menos a omissão, dos generais da reserva que hoje participam do governo.
Do presidente da República, que jurou ao tomar posse defender a Constituição, saíram as críticas mais contundentes e as propostas de desobediência civil e de desrespeito à ordem legal para defender seus interesses pessoais, embora haja discordância entre os juristas sobre o cometimento de que algum crime possa a ele ser atribuído nessa reunião. Algo que, à luz do sol, é incompreensível para qualquer leigo em matéria jurídica, tal a clareza somada ao destempero de suas cobranças dos ministros na defesa de seus atos.
Ora, se a interferência na Polícia Federal para, claramente, poder indicar um delegado geral e um superintendente desse órgão em seu estado, que sigam suas ordens e bloqueiem investigações sobre sua família e seus amigos, não constitui crime, como defendem, contra todas as evidências, alguns de sua aliados, então algo de muito errado existe na ordem legal por permitir que o interesse pessoal do governante se sobreponha ao interesse público, coletivo.
O mesmo ocorre, como manifestado pelo presidente nessa reunião, com sua intervenção em órgãos públicos, mais especificamente no caso concreto do IPHAN que foi citado, para atender a demanda de seus amigos e apoiadores na aprovação de obras de seus interesses particulares, aparelhando-os, para essa finalidade, com pessoas de sua estrita confiança.
Também grave, o incitamento à desobediência civil ao propor, ao então ministro da Justiça, Sérgio Moro, a publicação de um decreto para armar a população para que essa possa defender seu direito de ir e vir, por exemplo, desrespeitando, por exemplo, as medidas de isolamento social, acompanhadas de multas e até mesmo de prisão, determinadas por governadores e prefeitos municipais, que receberam a sanção do STF. Embora tenha justificado tal proposta com o argumento de que com “o povo em armas” haveria mais resistência para impedir qualquer ditadura de se instalar, não há dúvidas, para muitos juristas, que ao incitar a desobediência civil, Bolsonaro estaria cometendo um crime contra a ordem legal.
Sem mencionar os diversos crimes anteriormente cometidos pelo presidente em sua cruzada verborrágica contra as instituições democráticas, pelos menos três outros crimes parecem ter sido materializados nessa reunião, de acordo com vários juristas: 1) o de responsabilidade, pela interferência na Polícia Federal; 2) o de advocacia administrativa, por sua interferência no IPHAN; e 3) o de desobediência, por incitar e querer armar a população para resistir às medidas legalmente adotadas pelos entes subnacionais de isolamento social. Quantos crimes serão de ser cometidos para que as instituições (Congresso, STF, Forças Armadas) despertem de sua sonolência para impedi-lo?
Com uma linguagem capaz de ruborizara os participantes de uma briga ou discussão em qualquer botequim, não poucos ministros de Estado, sem sofrerem qualquer contestação, a ele se juntaram para externar suas posições antidemocráticas e sugerir medidas para burlar ou contrariar as regras da democracia, considerando-a intolerável para seus propósitos.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, por exemplo, que não se dá bem nem com a gramática, nem com a ortografia da língua portuguesa, com uma imprecisa noção de anseio por liberdade, que não explicou para quem, condenou o judiciário por garantir e estender privilégios para determinados atores da sociedade, incluindo os povos indígenas, e propôs colocar na cadeia esse “bando de vagabundos, a começar pelos ministros do STF”, a instituição responsável pela guarda da Constituição. No mesmo diapasão, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que pouco entende do que esses direitos significam, a prisão de governadores e prefeitos por adotarem medidas radicais para o isolamento social contra a pandemia.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, inimigo da natureza por considerá-la um entrave para o desenvolvimento econômico (na verdade, para a exploração predatória da Amazônia), por sua vez, sugeriu que o governo deveria aproveitar a conjuntura favorável colocada pela pandemia, que estava mantendo a imprensa ocupada com a sua cobertura, e, juntamente com outros ministérios, ir aprovando as matérias infralegais necessárias para a desregulamentação do setor ou, nas suas palavras, para “ir passando a boiada” dessas medidas sem chamar a atenção, ou seja, na surdina. Para se proteger, ainda pediu a ajuda da Advocacia Geral da União (AGU) para defender o governo dos questionamentos judiciais que porventura fossem surgindo a respeito das mesmas.
O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, o mesmo dos laranjais, com um papo de que estava preocupado em apenas trazer investidores para o país, aproveitou a sua fala para fazer lobby para os donos de jogos de azar, edulcorando sua proposta com o sugestivo nome de resorts integrados. Já o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja fala não aparece no vídeo por terem sido excluídas as partes que mencionam países estrangeiros, andou, de acordo com relatos de membros que participaram da reunião, ofendendo, como costumeiramente, nações importantes em termos de comércio com o país. Até mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, não perdeu a oportunidade de lançar impropérios contra o Banco do Brasil para convencer o público presente na reunião de ser necessário sua privatização, um de seus mais acalentados sonhos neoliberais.
Um vídeo para ficar na história como exemplo de como os golpes costumam e continuam a ser construídos à medida que não enfrentam resistência das instituições responsáveis pela preservação do Estado de direito, com essa praticamente ficando restrita a pequenas notas de repúdio sobre determinados atos que pouco valem neste caso. Por isso, enquanto o Brasil continua afundando numa crise sanitária, econômica e política, formando a tempestade perfeita para a instalação do caos, personagens como as mencionadas que participaram dessa reunião, embora nem todos nela presentes alimentem este propósito, não titubeiam em seguir em frente, contando com o desencanto da população, para ir propondo um golpe na democracia. No final, quem paga por todo este desatino termina sendo sempre o mundo livre de tiranos e ditadores.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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