Fabrício Augusto de Oliveira*
Três das principais autoridades do poder judiciário, no Brasil, vêm travando uma disputa acirrada para agradar o presidente Bolsonaro com a expectativa de ser por ele escolhido para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF): o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, e o ministro da Justiça, André Mendonça. Nessa disputa, em que os interesses da sociedade têm sido colocados de lado, em prol de seus interesses pessoais, até mesmo medidas jurídicas “estranhas” ou teratológicas não têm faltado no cardápio de seus autores, com o objetivo de amealhar o maior número possível de pontos para ser ungido pelo presidente.
Noronha, presidente do STJ, para quem Bolsonaro já declarou, no final do mês de abril, “amor à primeira vista”, não tem hesitado, mesmo caindo em contradição com decisões anteriores proferidas sobre matérias similares, em favorecer seus interesses. Em fevereiro deste ano, derrubou decisões contrárias de esferas inferiores que impediam a posse de Sérgio Camargo, por suas notórias posições racistas, como presidente da Fundação Palmares. Em maio, fez o mesmo com as decisões judiciais de primeira e segunda instância que obrigavam o presidente a divulgar os resultados de seus exames de coronavírus, sob o argumento de que o mesmo teria direito à privacidade. Agora, como responsável pelo plantão do STJ durante o recesso de julho deu o lance que pode lhe render mais pontos nessa disputa: a concessão de prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, “homem-bomba” para a família Bolsonaro, e a sua companheira, Márcia Aguiar, considerada foragida da Justiça desde que sua prisão preventiva foi decretada.
A decisão de Noronha, justificada nas condições de saúde de Queiroz e de que esse precisará de contar com a ajuda de sua companheira, Márcia Aguiar, enquanto estiver em prisão domiciliar, razão por que estendeu para a mesma este benefício, recebeu todos tipos de críticas de seus próprios pares do STJ, de acordo com notícias veiculadas nos órgãos de imprensa, entre as quais as de “absurda”, teratológica”, “uma vergonha”, “muito rara”, “disparate”, para ficar com algumas.
A razão dessas críticas reside no fato de Queiroz ter, comprovadamente, orientado e pressionado testemunhas e agido para prejudicar as investigações, o que mais do que justificaria a manutenção de sua prisão. E, também grave, por Noronha não ter sequer se disposto a apreciar um pedido de habeas corpus coletivo, pelas mesmas razões (doença e grupos de risco) para pessoas pobres e idosos, demonstrando seletividade em seu julgamento. No caso de Márcia, por ser foragida da Justiça, que ganha a liberdade, ainda que restrita, para “cuidar” de Queiroz, antes mesmo de ser presa. Um “absurdo” para a maioria dos juristas ouvidos, mas não para Noronha.
Augusto Aras aparece, neste filme, por ter conseguido, com a ajuda do presidente, furar a lista tríplice do Ministério Público Federal e se tornar Procurador Geral da República, cargo ao qual dificilmente chegaria se dependesse da votação de seus membros. Com o objetivo de colocar um nome de sua estrita confiança na PGR, Bolsonaro ignorou uma tradição de quase 20 anos feita com base em eleições no MPF para definir três candidatos que concorreriam ao cargo, e escolheu Aras como seu representante.
Desde que assumiu, Aras tem correspondido perfeitamente aos seus desejos e interesses, mesmo que, aparentemente disfarçando sobre suas reais intenções. Foi assim quando abriu o inquérito para investigar as denúncias feitas por Sérgio Moro sobre a interferência do presidente na Política Federal, quando, na verdade, mirou mais Moro e o incluiu também como investigado por “denunciação caluniosa”, uma medida considera estranha no meio jurídico, mas acabou se dando mal por desconhecer a existência de um vídeo que confirmava suas denúncias e o livrava de qualquer suspeita.
Contra todas as evidências, Aras nunca conseguiu enxergar qualquer crime de responsabilidade cometido pelo presidente: nem por sua insistente desobediência das normas e protocolos estabelecidos pela OMS e pelo próprio Ministério da Saúde do Brasil no combate à pandemia, colocando em risco a vida da população, nem por sua participação e apoio a atos antidemocráticos e nem do desmonte que sua equipe vem fazendo no meio-ambiente, afirmando que não cabe ao MPF interferir em políticas públicas. Quando abriu inquérito para a investigação dos movimentos antidemocráticos, dela excluiu o presidente, mesmo este tendo participação ativa nos mesmos e restringiu-a a seus financiadores, assim como se manifestou contrário ao inquérito das fake news que corre no STF e que tem como principal alvo os apoiadores do presidente.
Da mesma forma, tem feito, ao que tudo indica, não mais que jogo de cena com a abertura de inquéritos para investigar assessores e seguidores do presidente, caso do chefe da Abin, Augusto Heleno, e de seu filho, Eduardo Bolsonaro, por supostas agressões verbais à democracia e desrespeito à Constituição, para não ser cobrado por inércia e negligência em seu papel, sabendo que dispõe do poder final para simplesmente mandar arquivá-los por insuficiência de provas. Nessa cruzada, tornou-se adversário visceral das forças-tarefa de combate à corrupção do MPF, recebendo o apoio de políticos e mesmo de membros do judiciário interessados em estancar essas investigações, usando, para isso, todas as manobras e ardis possíveis para desidratá-las e colocá-las sob seu controle, para o que conta com o apoio de alguns membros do próprio STF que, volta e meia, tomam decisões para limitar sua autonomia. Sempre em nome de um compromisso com a legalidade.
Entre os integrantes do MPF, é crescente o desconforto com a proximidade de Aras com o presidente, de quem já recebeu o elogio de estar fazendo um “trabalho extraordinário”, sem, óbvio, dizer para quem, e com as decisões que tem tomado para defender e proteger seus interesses, podendo-se considera-lo mais como um Protetor Geral da República. Tanto que fizeram um abaixo-assinado com a assinatura de mais de 600 procuradores, de um total de 1.150, defendendo a volta da lista tríplice, e têm seguidamente criticado suas decisões como uma desconstrução da imagem do MPF e da PGR, a quem cabe investigá-lo e não protegê-lo. No afã de agradar o presidente, Aras chegou mesmo a fazer uma leitura torta do art. 142 da Constituição Federal de 1988, como se este autorizasse as Forças Armadas a atuar como Poder Moderador, podendo ser acionada pelo Executivo para intervir nos outros poderes, justificando, assim, um golpe de Estado, embora depois tenha recuado com a decisão do STF que descartou essa possibilidade.
André Mendonça, ministro da Justiça e pastor “terrivelmente evangélico”, o que lhe confere um diferencial em relação aos demais, dadas as crenças religiosas de Bolsonaro, tem se empenhado para não ficar atrás nessa disputa. Embora como ministro ainda não tenha conseguido dizer o que pretende, mesmo depois de mais de dois meses de sua posse, tem atuado, na prática, como advogado particular do presidente, ocupando o espaço que deveria caber à Advocacia Geral da União (AGU).
Como tal, embaralhando a lei, entendeu que a “liberdade de expressão” permite o cometimento de crimes de difamação, ódio e calúnia, ao apresentar um pedido de habeas corpus, tarefa que caberia à AGU, para o ministro da Educação, Abraham Weintraub, no STF, no inquérito das fake news. Mais grave, misturando interesses públicos e privados, ainda estendeu o pedido para os investigados, neste inquérito, pertencentes à esfera privada, apoiadores fanáticos de Bolsonaro, sob o argumento de que o inquérito fere a “liberdade de expressão”. Sem ruborizar, borrou, logo na sua entrada no ministério, a letra da lei e queimou sua biografia como especialista e defensor da justiça no país. Mas não parou por aí.
A mando de Bolsonaro, solicitou, no mês de junho, à Polícia Federal, a investigação de uma charge de autoria do desenhista Aroeira, na qual este faz alusão à ausência de políticas sanitárias em plena pandemia, mostrando uma cruz vermelha (símbolo da saúde) transformada em suástica pelas mãos autoritárias do presidente. Como charge (uma peça de humor sobre determinada situação/fato) nem mereceria ser questionada, mas o ministro foi muito além: pediu para enquadrá-la como crime da lei de segurança nacional, a ordem política e social, uma lei da época do regime militar. Tornou-se censor do humor nacional, repudiado por várias associações de jornalistas, cartunistas e imprensa independente. Uma lástima como ministro da Justiça numa democracia.
Com tantos escudeiros no judiciário, Bolsonaro não teria nenhuma dificuldade para continuar trilhando, com sucesso, o seu projeto autoritário para o Brasil, não fosse o fato de ter de combinar com as Forças Armadas e com 75% da população que, recentemente, manifestou, em pesquisa, apreço pela democracia. Felizmente, as Forças Armadas têm se mostrado irredutíveis em seu papel de defender a Constituição sem se deixar seduzir pelas propostas e flertes com ações golpistas de Bolsonaro e de seus assessores generais da reserva com o respaldo dessas figuras do judiciário para quem o cargo no STF vale mais do que a democracia e a harmonia social. Mas tendo ingressado na fase atual conhecida como “Jairzinho, paz e amor”, provavelmente estes escudeiros fieis perdem importância e pode ser que nem cheguem lá, caso ele não retome a política de confronto. A conferir.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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