Por Erlon José Paschoal *
Há escritores que influenciaram profundamente a História humana com suas fantasias, seus devaneios e suas elaborações literárias. Em julho de 1883, nascia em Praga um escritor que iria povoar para sempre a imaginação humana. Seu nome tornou-se proverbial tal a força de sua influência. Com seus sonhos, seus “pesadelos lacônicos” e suas observações irônicas sobre o comportamento humano, Franz Kafka acabou se tornando um símbolo da sensação de irrealidade presente no cotidiano do homem moderno; eternizou o indivíduo deslocado - a displaced person - tentando compreender a si mesmo num mundo regido por leis inacessíveis. Tive o prazer de traduzir para a Editora Estação Liberdade uma de suas obras mais conhecidas, A Metamorfose. Como tradutor, esta foi uma de minhas experiências mais marcantes e gratificantes.
Seu último texto, escrito alguns meses antes de sua morte em 1924, com 41 anos incompletos, chama-se “A Construção“ (Der Bau). Nele, o narrador-personagem - que não temos certeza se se trata de um animal desconhecido ou de um ser humano – constrói no subsolo como habitação um labirinto de corredores, túneis, esconderijos e de espaços diversos, buscando o isolamento perfeito, o distanciamento absoluto de qualquer semelhante ou de algum ser diferente, mesmo sem qualquer pandemia.
Ele passa todo o seu tempo empenhado em cavar, tapar, cobrir, fechar, nivelar e impedir qualquer possibilidade – a mínima que seja – de que algum invasor possa surpreendê-lo. Nesta atmosfera quase sufocante, ele almeja prevenir-se, precaver-se e preparar-se para algum ataque inesperado. Afinal, as ameaças são constantes, as reais e as imaginárias, e ele vive prisioneiro de seus próprios pensamentos.
O conto se compõe de um fluxo intenso e ininterrupto de palavras, onde nada acontece a não ser o trabalho incessante e desvairado, e a opressão da espera, da insegurança e o temor de uma invasão repentina. Há a necessidade do controle de todos os pormenores, de todas as possíveis condutas de supostos inimigos ou adversários, ou simplesmente de aproveitadores que supostamente querem se apossar de sua construção.
Seria uma fábula remetendo a uma organização social opressiva, totalitária e vigilante, na qual não há futuro e nem qualquer utopia a ser elaborada, e na qual tudo o que possa representar uma ameaça deve ser exterminado? Afinal que prisão voluntária seria esta construída pelo próprio personagem e que se torna o sentido e a razão de sua vida? Será que em nosso cotidiano também somos induzidos e controlados pelos próprios hábitos e levados a assumir involuntariamente comportamentos impostos por forças que desconhecemos? Bem, muitas interpretações são possíveis e cada leitor vai reelaborar as suas próprias sensações.
Apesar de Kafka ter morrido antes de dar um desfecho à história, fica a forte sensação contraditória de que quanto mais o personagem almeja alcançar a segurança absoluta, mais ele perde a liberdade e é engolido, literalmente soterrado, pela própria fortaleza e por seus próprios temores.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.