Por Guilherme Narciso de Lacerda (*)
A insaciável exigência que prolifera nos discursos e na imprensa para que o Partido dos Trabalhadores faça autocrítica e reconheça seus erros é conhecida de todos e ela continuará, por mais que dezenas de lideranças tenha se manifestado sobre as ações bem-sucedidas e também os equívocos em todos os quadrantes. As cobranças perdurarão, pois são oriundas de preconceitos e não do desejo de ouvirem explicações e argumentos.
Essa demanda por autocrítica precisaria ser estendida aos grupos sociais e lideranças que são responsáveis pela eleição do atual mandatário. Mas, por enquanto ainda são raros esses casos, por mais estapafúrdia que seja a sucessão de acontecimentos que destrói e humilha nosso país perante o mundo. E alguns ainda realçam que tal escolha infeliz foi feita para evitar um mal maior.
Esse é o caso do artigo “Nosso Brasil está quebrado? ” escrito por Sérgio Rogério de Castro e publicado recentemente nesse espaço. A biografia admirável do autor, como empresário bem-sucedido, liderança industrial e com uma breve passagem pela política, recomenda que seus escritos sejam valorizados pois, na certa, ajudarão na reflexão de nossa complexa realidade e história recente. Portanto, em respeito aos fatos e na valorização de um debate em bom nível, alinhavo alguns parágrafos em resposta ao argumento de que a escolha de 2018 “nos livrou do aprofundamento de uma socialização corrupta”.
Temos em sua afirmação, dois aspectos graves, o primeiro relacionado ao tema da ética na política, da postura imprópria dos dirigentes e partícipes daquele período; o segundo ponto está associado à opção pelas políticas públicas, as quais, no argumento utilizado, visavam uma socialização do sistema. Suponho que, nesse caso, o autor esteja utilizando o termo para conceituar o contrário de uma economia liberal, de mercado.
Sobre o delicado tema da ética é indispensável separar com lupa o que existiu de fato, desde 2005, até desembocar na interrupção anômala de um governo legitimamente eleito e o aprisionamento injusto de um ex-presidente da República, impedindo-o de participar da consulta democrática.
É certo que a ausência de uma profunda reforma política e o enfrentamento das práticas de financiamento de campanhas foi fator relevante para disseminar e fortalecer vetustas práticas inadequadas nas arenas políticas e nas relações empresariais. Todavia, a narrativa imposta pela mídia corporativa e seguida entusiasticamente por lideranças e grupos sociais bem postados na estrutura de poder foi a de que o governo de então era de longe o principal – senão o único - responsável por todas as desgraças que assolavam nosso país. O tempo vai passando e a cada dia fica mais evidente toda a verdade sobre o que esteve por trás de uma perseguição impiedosa sobre as principais lideranças daquele tempo. Que os leitores façam seus julgamentos diante do que estamos constatando.
Por sua vez, a referência de ter sido evitado “um governo socializante” é rigorosamente falsa pois não condiz com o teor das políticas públicas realizadas e que foram decisivas para transformar o país e colocá-lo num patamar jamais atingido no cenário mundial. Poderia ser descrito em dezenas de páginas as realizações que beneficiaram a população brasileira e fortaleceram a economia nacional. E mais, poderia ser demonstrado que, naquele tempo, os empresários nunca ganharam tanto, que as entidades patronais foram respeitadas, que se avançou como nunca na redução de milhões de famílias da pobreza e a sua inclusão no mercado de consumo (onde adquiriam os produtos dos que hoje criticam o passado). Mas, para não ficar apenas na defesa e nos elogios, também poderia ser dito que de meados de 2013 em diante a política econômica adotada foi equivocada por várias razões, uma delas, a insistência em manter um feixe enorme de subsídios exatamente ao setor industrial, com o “PSI – Programa de Sustentação de Investimentos”. Mas “socialização” não! Poderia ser dito talvez o contrário, que o governo não conseguiu viabilizar no congresso uma reforma tributária que tornasse nosso sistema mais justo, com incidência maior de tributos sobre a riqueza e a renda e menos sobre os fluxos comerciais e o consumo.
Os dados estão aí para serem confirmados. Desde 2003 o governo federal conduziu a política econômica com responsabilidade, até ocorrer uma piora do quadro fiscal de 2013 em diante, principalmente pela queda da arrecadação, inclusive com a insistência em desonerações tributárias. Todavia, até aquele ano os resultados orçamentários superavitários foram conquistados com simultânea expansão das taxas de investimento público e sem pressionar a dívida pública líquida. E não vale afirmar que todo o êxito se deu por causa dos bons ventos externos. Em 2008/2009 o mundo presenciou a maior crise financeira mundial desde 1929. As medidas adotadas internamente foram eficazes e protegeram o país, com realizações que não podem ser negadas. A obtenção de uma reserva internacional superior a 370 bilhões de dólares no 2º governo Lula reverteu a histórica situação de fragilidade de nossas contas públicas. Ela resultou de ajustes corretos nas políticas cambial e de administração da dívida pública; ela não foi fruto do resultado da balança comercial, como o autor do artigo ressaltou. Se apenas saldos comerciais do agronegócio resolvesse com certeza a Argentina teria hoje uma situação financeira confortável, o que não aconteceu por causa das medidas vesgas do liberalíssimo governo Macri.
Está certo o autor do texto que é objeto de minha referência. O Brasil não está quebrado e discursos nessa direção são aleivosias que não ajudam. A dívida pública atual é suportada por brasileiros e tal situação faz toda a diferença. O crescimento recente da relação dívida/PIB foi fortemente influenciada pela sofrível trajetória de nossa economia, que amargou dois anos de recessão e depois uma retomada raquítica, até chegar em 2020 com o fato inusitado da pandemia que assola o mundo.
O que mais falta para que os responsáveis pela escolha feita em 2018 reconheçam a estupidez cometida? O que é preciso para reconhecer o desastre com a ascensão de um governo insensível e desumano, com uma gestão negacionista no combate a uma pandemia que já ceifou mais de 232 mil brasileiros?
Enfim, vamos às autocríticas, com equilíbrio e respeito aos fatos.
(*) Guilherme Narciso de Lacerda, Doutor em Economia pela Unicamp, professor universitário. Foi Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, recém-publicado pela Editora LetraCapital.
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