Por Erlon José Paschoal *
Neste momento de idiotização e de imbecilização, de uma demência coletiva e de uma cegueira política que entorpece uma parcela da população brasileira, uma obra que merece ser lida ou relida é a peça teatral “O Rinoceronte” de Eugène Ionesco.
Ele é reconhecidamente um dos maiores dramaturgos do século XX. Ao lado de Samuel Beckett, é um dos representantes mais expressivos do chamado Teatro do Absurdo, movimento teatral de vanguarda ocorrido, sobretudo na França na década de cinquenta, no clima de pós-guerra, e cujas peças evidenciavam o desmoronamento das certezas e dos valores civilizatórios considerados fundamentais até então. Foi também uma tentativa de entender as causas da adesão de inúmeros grupos sociais a movimentos fascistas e totalitários que destruíram a Europa e boa parte do mundo. Nascido em 1912 em Slatina, na Romênia, Ionesco veio a naturalizar-se francês, pois passou a maior parte de sua vida em Paris. Seu primeiro texto escrito em 1948 - A Cantora Careca - abriu-lhe as portas para uma carreira promissora e para a fama internacional.
Suas peças têm sempre algo em comum: utilizam-se de situações e personagens absolutamente corriqueiros para, de repente, deixarem irromper todos os seus desejos e sonhos reprimidos, desnudando assim os padrões hipócritas que regem o comportamento das “pessoas de bem” em nossa sociedade.
Poucas vezes montados no Brasil, seus textos carregados de humor corrosivo sempre provocam no público a incômoda sensação de vazio e de que a sociedade capitalista está fadada à deterioração espiritual e à autodestruição. Eles fazem rir, mas é impossível não refletir depois acerca das situações vivenciadas pelos personagens. Tive o prazer de dirigir em Vitória um de seus textos “As Cadeiras”, no final da década de 90, com os atores Ednardo Pinheiro e Maria Alice Costa.
A história de “O Rinoceronte” é simples: em uma pacata cidade da França, dois amigos, Bérenger e Jean, conversam sentados à mesa de um café, ao lado de uma mercearia, quando de repente passa correndo por ali um rinoceronte. Alguns se espantam e outros não acreditam no que veem. Instantes depois, outro rinoceronte atravessa a praça em disparada e mata um gato de uma senhora ali presente. Isso causa uma comoção e um assombro nos habitantes do local. Alguns acham que é uma alucinação, outros acham que foi uma brincadeira de mau gosto, outros dizem que não é preciso levar isto muito a sério. Um dos personagens chega até mesmo a gritar: “O vosso rinoceronte é um mito!” Até que centenas, milhares de pessoas se transformam em rinocerontes e começam a assustar a todos. Como uma epidemia, como se fosse um bozonavírus.
No final do segundo ato vemos a metamorfose de Jean em um rinoceronte, frente ao seu amigo Bérenger: ele vai se tornando violento, agressivo, despreza os valores e os direitos humanos e vai assumindo a sua animalidade. Muito parecido com o Brasil de hoje em que um bando de rinocerontes verde-amarelos idolatram torturadores, racistas e um miliciano genocida.
Durante o terceiro ato, em que ocorre o aumento do número de casos de “rinocerontite”, os personagens soltam frases que poderiam ter sido ditas no Brasil de hoje: “As autoridades também aderiram!”- “Talvez um quarto dos habitantes da cidade tenha se transformado em rinoceronte!” - “O meu primo e a mulher viraram rinocerontes!” – E aquela frase típica dos omissos que conhecemos muito bem: “Isso é passageiro, não se preocupe!”
Ao final, o protagonista Bérenger termina sozinho, abandonado também pela mulher que amava, Daisy, e grita: “Eu me defenderei contra todo o mundo! Sou o último ser humano, hei de sê-lo até o fim! Não me rendo!”. E assim termina a peça.
O texto simboliza de maneira patética a manipulação, o irracionalismo, a alienação do indivíduo em uma sociedade de massa e a transformação de uma parte significativa da população em uma manada fanática e agressiva, a ser usada como instrumento político. Nada mais atual!
Até falecer, em 1994, Ionesco manteve o seu estilo polêmico e profundamente crítico em relação ao homem embrutecido, à solidão característica da vida moderna e ao esvaziamento da linguagem, totalmente contaminada por slogans, clichês e frases feitas de toda ordem.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.