André Moreira*
Ontem pudemos observar uma brilhante estratégia de engodo aplicada por quem de verdade manda no Brasil. O engodo é a ação de tática que visa encobrir o objetivo estratégico, chamando a atenção do adversário para outros objetivos que são como iscas. No caso particular o engodo foi ainda mais efeicaz porque fez com que o adversário - nós - atirasse contra o próprio patrimônio. Vou tentar explicar o que ocorreu utilizando da paráfrase de da ex-presidenta Dilma Rousself, que em 29/9/2010" registrou a seguinte frase enigmática: "Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar ou perder, vai ganhar ou perder, vai todo mundo perder”. Tenho que reconhecer que ela estava certa, ao menos sobre o futuro.
Há algum tempo estamos enfronhados na discussão sobre o voto impresso. Em 2015, uma decisão quase unânime do Congresso Nacional instituiu, atraveés do o art. 59-A da Lei 9.504/1997, o voto impresso na urna eletrônica como instrumento de auditabilidade das eleições. Votaram favoravelmente em peso todos os partidos da esquerda com representação no Legislativo federal. O STF, no entanto, no julgamento da medida cautelar da ADI 5889, sob o argumento tecnicamente insustentável de que o registro físico do voto violaria seu sigilo, suspendeu do dispositivo legal, paralisando o processo de implantação do voto impresso na urna eletrônica.
Desde 2020, Bolsonaro vem tratando esse tema como um cavalo de batalha diversionista, chegando a ameaçar um golpe de força se não houver voto impresso em 2022. Nós, como já é de costume, caímos nessa armadilha e – tendo ativado nosso mecanismo de resposta pavloviano pensamos “se Bolsonaro é a favor, nós somos contra” –, em menos de cinco anos mudamos nossa posição sobre a auditabilidade da eleição eletrônica.
Nisto, convém dizer, expondo o nosso negacionismo científico, pois deixamos de ouvir as advertências de cientistas da informação como os Professores Doutores Diego Aranha e Pedro Y. S. Barbosa, para citar dois em âmbito nacional e que participaram de testes nas urnas eletrônicas entre 2012 a 2017, além de Ronald Rivest, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que sustentam que os sistemas de votação eletrônicas são incapazes de gerar certeza sobre a integridade do voto dado pelo do eleitor, na fase de consolidação na urna, e defendem a auditagem por um mecanismo independente do software, no caso, o voto impresso1.
Há ainda um argumento de natureza política abandonado pela esquerda que diz respeito ao fato de que a auditabilidade de uma eleição, como ato fundamental de uma democracia, deve ser acessível ao eleitor médio, sem conhecimento técnico. Foi, inclusive, essa a decisão da Corte Constitucional Alemã no caso julgado em 03 de março de 2009, cujas teses foram assim registradas: “1. O princípio da liberdade de escolha do Artigo 38 em combinação com o Artigo 20 (1) e (2) da Lei Básica exige que todas as etapas essenciais da eleição estejam sujeitas ao escrutínio público, a menos que outras questões constitucionais justifiquem uma exceção. 2. Na utilização das urnas eletrônicas, deve ser possível ao cidadão verificar as etapas essenciais do processo de votação e da apuração dos resultados de forma confiável e sem especialização”.2
Portanto, para os alemães a urna exclusivamente eletrônica é que é inconstitucional.
No caso da urna brasileira, o dispositivo que, em tese, seria garantiria a audibilidade do voto é o arquivo Registro Digital do Voto (RDV), que é gerado pelo próprio software da urna. Uma vez que a urna esteja em poder de um atacante interno ou externo, também esse arquivo pode ser alterado de forma a corresponder ao resultado hipoteticamente adulterado.
Quanto aos eventos de testagens, os cientistas têm se queixado de que o regime concorrencial dos Testes Públicos de Software, a criação de limitações artificiais, às quais um atacante não estaria limitado, e a ênfase no atacante externo, subestimando o risco de um ataque vindo de alguém com acesso privilegiado ao sistema, são fragilidades que impedem a maior e adequada colaboração da comunidade científica para aprimoramento do processo eleitoral eletrônico no Brasil.
Para que não fiquem dúvidas sobre a orientação política dos cientistas, Diego Aranha se manifestou contrário aos fundamentos de Bolsonaro para sustentar o voto impresso e Riverst assinou uma carta contra as alegações de fraude de Trump nas eleições americanas de 2020. Registre-se ainda que os cientistas brasileiros nunca alegaram que houve fraude nas eleições desde de a implementação da urna eletrônica, mas sustentam que, muito embora achem muito improvável, não é possível afirmar categoricamente que não houve, ante as deficiências de engenharia do processo eleitoral eletrônico brasileiro.
O fato é que, com o resultado de ontem, vencida a PEC que instituía o voto impresso, permanece valendo a decisão do STF que o declarou inconstitucional – por motivos não razoáveis. Vale lembrar que o presidente TSE, órgão incumbido de organizar os processos eleitorais, é sempre um ministro do Supremo, o que nos dá a impressão de que o órgão executor não quer ser fiscalizado. Na república e na democracia, fiscalização é a alma do negócio; confiança e mistério são, ao contrário, coisas próprias dos regimes teocráticos ou carismáticos.
Ontem, então, Bolsonaro perdeu, mas ganhou um fundamento para sustentar que sua cada vez mais provável derrota em 2022 será fruto de uma fraude eleitoral e terá bons argumentos para, pelo menos, sustentar cientificamente que o sistema é inseguro na primeira fase da votação. Seguirá perdendo, no entanto, porque o motivo de sua má avaliação no eleitorado não tem nada a ver com a forma do voto. Seu governo é certamente o pior da história do Brasil desde quando temos dela registro.
Nós ganhamos – de Bolsonaro na sessão da Câmara –, mas perdemos a oportunidade para a garantia fundamental da auditabilida de do processo eleitoral e em um futuro recente podemos ter de lidar com os efeitos prejudiciais dessa vitória suposta. Perdemos também em consciência crítica e o sentido da nossa posição nesta “guerra de posições” em que estamos metidos.
Assim, como profeticamente asseverou Dilma em 2010 “quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar ou perder, vai ganhar ou perder, vai todo mundo perder”.
Bem, talvez só quem tenha ganho seja o TSE que continua a dizer quando e como e até quais limites sua atuação será fiscalizada.
*Advogado e articulista.
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