Por Erlon José Paschoal*
Neste momento em que o Brasil foi acometido por um processo de imbecilização, de emburrecimento e de desumanização, elegendo como inimigos a Cultura, a Educação, a Ciência e a Democracia, atacando os valores civilizatórios básicos para se viver em sociedade, é importante reler ou ler obras que nos auxiliem a entender melhor estas anomalias.
Um destes livros é “Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal” de Hannah Arendt, publicado no Brasil pela Ed. Companhia das Letras. Hannah Arendt, alemã de ascendência judaica, aluna de Martin Heidegger no período entre guerras na Alemanha, autora também de “Origens do Totalitarismo” e “A Condição Humana”, foi obrigada a emigrar quando os nazistas tomaram o poder em 1933 e, depois de algumas prisões e estadias forçadas, foi parar nos Estados Unidos onde viveu até sua morte, em 1975, com 80 anos.
O livro foi inicialmente o resultado de uma cobertura jornalística do julgamento de Adolf Eichmann, preso clandestinamente na Argentina pelo serviço secreto israelense em 1960 e conduzido a Jerusalém para ser julgado por crimes contra o povo judeu. Há vários aspectos relevantes nestes relatos – como por exemplo, as organizações nazistas dedicadas à “limpeza étnica”, a solução final, o extermínio industrializado, a controversa cooperação de instituições e autoridades judaicas com as políticas nazistas e as contradições do próprio julgamento, entre outros -, que depois foram acrescidos de adequações diversas, um epílogo e um pós-escrito, tornando-se uma obra que causou furor nas comunidades judaicas, sofrendo inúmeros ataques, mas também estimulando muitos leitores a tentarem compreender o Mal, não um Mal qualquer, mas um Mal extremo que horrorizou o mundo, praticado barbaramente nos campos de concentração.
Adolf Eichmann não foi um assassino, era apenas – como afirmou inúmeras vezes – um cumpridor de ordens, responsável pela logística da deportação em massa e do transporte por trens de milhões de pessoas de vários países ocupados pelos nazistas, para serem exterminadas nos campos de concentração, sobretudo no maior deles, o de Auschwitz. Mas….como entender que aquele homem comum, medíocre, franzino, com um olhar apático e vazio, repetindo um amontoado de frases feitas, tenha cometido tamanha atrocidade e se declarasse inocente, pois “não havia matado ninguém”? Seria apenas um burocrata exemplar cínico e infame? Um seguidor cego, incapaz de raciocinar por si mesmo?
Afinal, uma pessoa de bem, que tinha mulher e filhos, uma vida normal com ambições comuns de subir na vida e ser reconhecido pelos superiores, como poderia se transformar em uma besta apocalíptica, em um demônio cruel, indiferente à fome, à miséria e à morte de milhões de pessoas? Como justificar o injustificável?
Para Hannah Arendt é quase impossível se reconciliar com este passado, mas ao mesmo tempo não se pode esquecê-lo, é preciso tentar compreendê-lo para que ele nunca mais se repita! Como o Mal pode ser tão banal? Como reagir ao se constatar que aquele homem prosaico tenha participado ativamente no abastecimento daquelas fábricas de cadáveres, em nome da produtividade, da racionalidade e do cumprimento estrito do dever? Tudo em nome do bem da humanidade, da bandeira alemã e do país acima de tudo! E, complementando este quadro grotesco, tudo em nome de Deus!
Tudo isso leva Hannah Arendt a repensar a ética e seus pressupostos, e a perceber o quanto esses indivíduos com horizontes estreitos e sem grandes motivações para cometer o Mal, sendo apenas levados por motivos torpes, egoístas e banais, podem se tornar tão perigosos ao seguirem líderes inescrupulosos e insanos e se deixarem manipular passivamente por slogans enganosos e mentiras ordinárias. Ocorre aí um exercício de absoluta desumanização do Outro, a fim de que as atrocidades possam ser cometidas sem quaisquer arrependimentos! Ou seja: a morte e a miséria do Outro não importa, não lhe diz respeito, porque não são mais humanos, foram esvaziados de subjetividade e não passam agora de judeus, russos, vermelhos, negros, esquerdopatas, muçulmanos, venezuelanos, comunistas, gays, ciganos, feministas ou qualquer outro suposto inimigo, de acordo com o momento e com a versão dos dominadores.
O Mal, diz a autora, não é uma força metafísica, misteriosa, mítica, mas surge por razões políticas e históricas. Escreve ela: “Em nome de interesses pessoais muitos abdicam do pensamento crítico (….) Abdicar de pensar também é crime!” Por isso é preciso refletir sobre estas situações e estes comportamentos, pois se não forem devidamente analisados e reformulados, eles podem voltar indefinidamente. E hoje, por exemplo, quando vemos pessoas de bem, famílias vistosas com a camisa da CBF acompanhadas de seus filhos bem nutridos, vociferando palavras de morte, de extermínio e ameaças de todo tipo, gritando que bandido bom é bandido morto, pedindo a volta da tortura e da ditadura militar e a morte imediata de quem pensa e se comporta de maneira diferente, ficamos surpresos com o fato de muitos considerarem estas cenas horripilantes como normais, comuns e, até mesmo, banais.
Ao se referir a estes comportamentos fascistas presentes nas melhores famílias diz Hannah Arendt: “O problema é que muitos eram e ainda são terrível e assustadoramente normais!”. E é este o seu maior perigo: de serem aceitos como normais até explodirem em violência, perseguições, censuras, assassinatos e deterioração das relações humanas. Refletir sobre estas artimanhas da dominação despótica e autoritária e suas consequências nefastas é preciso sempre!
* Gestor Cultural, Diretor de Teatro, Dramaturgo, Professor e Tradutor de Alemão.