Guilherme Lacerda*
Hipocrisia. Não há palavra melhor para entender a “Marcha para Jesus” do último sábado (24 de julho), que se transformou em um acontecimento político de repercussão nacional. Foram milhares de participantes formando uma onda de claridade étnica e de grupo social privilegiado que bradavam palavras de louvores a um político militar classificado como “mito”, o qual receberam com júbilo e orgulho.
Etimologicamente, hipocrisia corresponde ao ato de dissimular, de falsificar, ou seja, que distorce a realidade e a mistifica. No Velho Testamento o hipócrita foi a qualificação dada aos ímpios, àqueles que se afastaram de Deus e, no Novo Testamento encontra-se a citação de que hipócritas são aqueles que expressam sentimentos e emoções fingidas. Hipócritas foram os fariseus que propunham fidelidade à tradição.
É triste constatar a pregação cristã em nome do Senhor Jesus, a corporificação de Deus, que se fez homem para nos salvar, associado com discursos de intolerância e ameaças aos que com eles não se identificam. Dentre os organizadores, um grupo se destacou pela defesa da difusão de armas para a sociedade e, para fortalecer esta mensagem, desfilaram com um carro alegórico de um Revólver 38. Quanta hipocrisia! Negam o sagrado mandamento “Não matarás!”.
Grupos de evangélicos neopentecostais e católicos conservadores se uniram para exaltar um chefe que elegeram como um ser especial, um “mito”, que os lidera em nome dos bons costumes e dos valores cristãos. Quanta hipocrisia! Um dirigente que assusta o mundo por suas atitudes e manifestações; que fez loas à tortura; que agrediu mulheres e minorias; que rispidamente respondeu a um concidadão que deixasse de comprar feijão para comprar fuzil; e que ameaça diuturnamente a democracia e as instituições que a integram, avançando sem acanhamento numa escalada golpista.
A opção por um Brasil em que predomina a perigosa divisão na sociedade entre um pseudo “bem” contra um pseudo “mal” poderá levar a consequências imprevisíveis e aqueles que a fortalecem serão responsáveis pelo que vier.
O passado do dirigente endeusado o condena. Oriundo da caserna, teve uma carreira pouco exemplar, interrompendo-a como oficial de baixa patente, sujeito de um inquérito militar e de palavras nada elogiosas de generais na etapa final dos governos militares. Depois, foi um político sem expressão por 28 anos, destacando-se por eleger seus filhos na “velha política”, a qual passou a denunciar em nome de uma irreal renovação. Uma grande farsa!
O verde e amarelo que predominou, inclusive colorindo e agredindo pombas - símbolo da paz - encobre comportamentos que agridem a nossa história. O entusiasmo com os EUA e com Trump sustentou até mesmo o gesto de continência para uma bandeira que não é a nossa. Um dirigente que tem como principal condutor da economia uma pessoa que mantém no exterior suas riquezas financeiras pessoais; que adota discursos e gestos constantes de agressão a líderes internacionais. Que fez do Brasil um pária internacional. Quanta hipocrisia!
A negação da realidade se espalha. Os manifestantes de agora agridem o passado e encobrem o presente. Denunciam a torto e a direito a suposta corrupção de antes, inflada e mistificada pela mídia corporativa, a qual incensou membros do judiciário e do Ministério Público que, depois, se revelaram verdadeiros agentes de injustiça, exercendo a negação do que haviam jurado cumprir. Que triste ver que os mesmos de antes continuam a atravessar a ponte sem pudor de terem apoiado a interrupção de um mandato presidencial legítimo. Um golpe que desorganizou profundamente o país e deu início a um período de horror, com impactos perversos sobre a sociedade, penalizando principalmente os mais pobres e levando à miséria e fome cerca de 33 milhões de patriotas.
Quanta hipocrisia afirmar que a corrupção acabou! A lista é longa: o vergonhoso “orçamento secreto”, junto com os tratoraços, ônibus escolares e caminhões de lixo; os abusos e negócios nebulosos na educação, no meio ambiente “passando a boiada”, no desprezo à ciência e o pior, nas transações reprováveis e comprovadamente ilegais na saúde, no momento em que o povo mais precisava de seus líderes. E tudo protegido imoralmente por cem anos de sigilo.
Quanta hipocrisia ver milhares alardeando em nome da família e dos valores cristãos e aplaudindo quem debochou das vítimas de uma pandemia que parou o mundo; de um dirigente incapaz de visitar um hospital ou uma família que perdeu seu ente querido; de um mandatário que caçoou de quem ficava sem ar com a COVID-19, de quem rispidamente respondeu que não era coveiro, não acreditava na vacina e por isso retardou sua aquisição e insistiu em tratamentos reconhecidamente inúteis. Uma péssima gestão na saúde. A consequência foi nosso país ser o segundo em número de óbitos e ter uma das maiores médias do mundo, com 2,7% de toda população mundial e quase 13% do total de vítimas fatais.
É indignante perceber que a marcha dos insensatos é composta predominantemente por profissionais liberais, funcionários públicos de alto e médio escalão, autônomos e empresários. Todos foram favorecidos em governos anteriores do partido que depois escolheram para odiar e taxarem seus dirigentes de bandidos. Hipócritas! Foram tempos de estabilidade econômica, respeito às regras e contratos, disciplina fiscal e políticas eficazes que transformaram o Brasil e o fez respeitado em todo o mundo.
Quanta hipocrisia quando se constata a mistificação de falsos líderes religiosos que esbravejam contra “comunismo e socialismo” em nome de um Cristo que repudiaria suas atitudes. Falsos profetas. Esquecem-se que, em 2003, o ex-Presidente da República que hoje atacam sancionou a Lei 10.825 que fortaleceu o princípio da liberdade religiosa, excluindo qualquer tipo de intolerância.
É doloroso ver o entusiasmo de milhares de “bem-nascidos” com a pregação enganosa, hipócrita, de uma criatura que não acredita na democracia; que vive obcecado com os clubes de tiro e avisa que se perder, o seu principal concorrente transformará cada um deles em bibliotecas; um presidente que reduz os impostos sobre armas e eleva os incidentes sobre livros.
A conclusão a que se chega é que se nada disso incomoda a tantos seguidores só pode ser porque eles são iguais ao que os lidera.
Enfim, essa é a realidade que falseiam. Se Jesus vivesse hoje, na certa, jamais participaria de uma marcha como a que se viu e nem deixaria que usurpassem o verde e amarelo de nossa pátria.
*Economista e professor universitário.
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