Por Ricardo Coelho dos Santos*
Caríssimos leitores do “Debates em Rede”.
Resolvi dar um passeio na bela cidade de Gramado para ver de perto a famosa festa do Natal Luz, tão comentada por turistas de norte a sul do Brasil. Posso dizer que realmente vale a pena. Eles passam o gosto da estação preferida do ano para grande parte da população, inclusive esse que vos escreve, com concertos, cantos solos e de corais, boa culinária e decoração caprichada num espaço bem amplo, com muitos enfeites natalinos, tudo muito bem iluminado, sistema de som público com canções da época, infelizmente todas com no mínimo cinquenta anos de idade, e belas mensagens de amor, paz, felicidade e alegria.
Porém, há um erro recorrente em alinhar o Natal inesquecível de uma pessoa com um momento de alegria, diversão, beleza e boas companhias. O Natal inesquecível pode ter sido um instante trágico de suas vidas, e, daí, terão uma lembrança negativa dessa época que deveria ter sido maravilhosa em tudo. É nesse feriado que os motoristas mais arriscam suas vidas com o perigoso coquetel que mistura álcool e gasolina; acidentes de carros e de motocicletas destroem as Boas Festas de cada família de um acidentado. Há situações piores ainda, que não vou escrever aqui, pois não quero induzir más ações a ninguém!
Mas nem sempre as alegrias natalinas são as responsáveis por um momento maravilhosamente inesquecível. Muitas vezes, é um momento de tristeza que fazem o nosso Natal ser maravilhoso. Relatarei um fato real com choro, tristeza e muita emoção que fez o Natal meu e de meus bons Companheiros positivamente inesquecível. Sempre lembramos desse momento com alegria.
Os meus amigos mais próximos sabem que sou um dedicado Chefe de Escoteiros. Sou Escoteiro há 59 anos e milito há 46 como adulto, tanto como Chefe Escoteiro, tecnicamente chamado de Escotista, como Administrador, que chamamos de Dirigente. Uma característica interessante de um adulto voluntário no Escotismo é que suas vidas são ricas. Somos pessoas que passaram por muitas experiências e, consequentemente, temos muitas histórias para contar. Isso valeu tanto para me influenciar nos livros que já escrevi como até mesmo no meu trabalho. O perfil de um Dirigente Escoteiro encaixa perfeitamente em algumas situações demandadas na nossa vida profissional, qualquer que seja a profissão seguida.
O nosso Grupo Escoteiro em Macaé, RJ, aceitou o desafio de atender crianças abrigadas numa instituição que recebia do Conselho Tutelar vítimas de abusos de todas as naturezas por parte dos pais. Seja por violência ou, por mais que queiramos evitar pensar no assunto, coisas muito piores ainda. A situação ali era tão delicada que recebemos uma série de informações sobre como deveríamos proceder. As crianças jamais deveriam ser tocadas, por exemplo.
Jovens escoteiros de todas as idades correram para doar e angariar doações de brinquedos. Alguns doaram até coisas novas. A regra era: brinquedos. Roupas, eles tinham muito. Alimentos eram desnecessários, uma vez que a Campanha da Solidariedade, um trabalho dos empregados da Petrobras, havia tirado Macaé do polígono da fome, naquela época.
Brinquedos velhos passaram a ser recuperados, roupas e sapatos de bonecas (por que as bonecas logo perdem os sapatos é um mistério que um dia hei de conhecer) foram arranjados, carrinhos voltaram a ter rodas e tudo foi limpo e lavado, até mesmo com apoio de pais e pessoas que sabiam fazer esse trabalho e ajudaram a orientar os jovens nessa faina. Até então, estava tudo perfeito. Porém, faltava o Papai Noel.
Havia um Papai Noel profissional que sabia trabalhar com crianças nessas condições críticas. Porém, ele adoecera e não poderia participar.
Os Pioneiros, que são os escoteiros com idades de 18 a 21 anos, lembraram do seu Mestre, que é como chamamos o Chefe Escoteiro que orienta jovens nessa faixa etária. Ser Mestre Pioneiro é um dos trabalhos mais exigentes do Escotismo, pois preferencialmente deve ser uma pessoa que orienta jovens de todos os gêneros já frequentando faculdades ou com empregos fixos, alguns até casados e com filhos. Não é, positivamente fácil, se ocupar de tal tarefa. O Mestre do nosso Grupo Escoteiro era muito alegre, um grande conselheiro, amigo dos Pioneiros e Pioneiras de um Clã com quase vinte jovens senhores, a maioria já frequentando uma faculdade e se preparando para seus primeiros empregos. Era muito gordo e fumava bastante. Os Pioneiros que ele assistia até escondiam seus cigarros para ele deixar seu único defeito de lado.
A princípio, ele modestamente achou que não serviria para o papel, mas acabou cedendo. Eu mesmo, na época Diretor daquele Grupo Escoteiro, interferi para ele se arriscar em abraçar tão nobre causa.
O dia chegou. Os Escoteiros foram anunciados àquelas crianças entre sete e doze anos de idade que estavam lá ajudando Papai Noel. Havia algumas coisas para elas comerem e se divertirem, enquanto os Pioneiros, Pioneiras, Seniores e Guias, esses último são respectivamente os rapazes e moças que fazem parte do Escotismo, com idades entre 15 e 18 anos, realizavam jogos, canções e danças com os pequenos. Tomamos a decisão de não permitir escoteiros com idades menores, pois para cada criança ali, cerca de vinte, havia um drama terrível. Eu, no encargo de orientação, soube da história de cada um, para saber como operar as atividades sem traumas.
Havia crianças que não queriam brincar. Havia quem só chorava. E havia quem estava se socializando como esperávamos. Uma menina só queria ficar sentada ao meu lado. Sua história arrepiou meus cabelos.
Finalmente, com todos sentados, eis que chega Papai Noel. O Mestre Pioneiro ficou perfeito no papel. Bem, era um Papai Noel mulato, mas quem é que se importa realmente com isso? Nunca vi Papai Noel de verdade, vou lá ficar preocupado em discutir uma cor de pele que eu desconheço qual seria a real?
As crianças ficaram doidas! Gritavam. Choravam de emoção. A regra de não as tocar fisicamente caiu logo para o chão: eram elas que cercaram “o bom velhinho”, o abraçando e o beijando. Ninguém esperava que isso fosse acontecer. Logo, as senhoras que eram técnicas da instituição avançaram nos pequenos, arrancando-os daquele que era, no momento, o alvo de seus amores e ternuras.
Chegou a chefe do setor encarregado de psicologia infantil da Prefeitura. Era uma psicóloga velha conhecida nossa, que já nos ajudara em algumas orientações. Deu uma tremenda bronca nas técnicas. Papai Noel poderia ser tocado, sim. Cada Escoteiro, jovem e adulto, poderia ser tocado por elas e, só assim, poderia ser correspondido na proporção do afeto infantil que elas demonstravam. Negar dar retorno de afeto era uma agressão que não podia acontecer.
O trabalho ficou bem mais fácil! Os brinquedos, todos já com os destinos que o pessoal do instituto, que conhecia bem cada um, tinha dado, foram distribuídos por Papai Noel com a ajuda dos Escoteiros. Uma menina, ao receber a primeira boneca de sua vida, pulou ao pescoço do Mestre Pioneiro e lhe deu um beijo. A técnica se assustou: a menina, justamente a que sentara ao meu lado, era totalmente aversa a beijos, pelo que ela já tinha passado. A psicóloga se sentiu vitoriosa. Vim a saber mais tarde que a ideia, verdadeiramente, tinha partido dela.
E, depois com todos brincando, era a hora de Papai Noel partir. Eles estavam ocupados demais naquele momento para colocar aquele maravilhoso ente mágico no primeiro plano de suas vidas e Papai Noel tinha ainda de visitar outras crianças para lhes dar outros brinquedos em outros lugares. A solidariedade daquelas pequenas vítimas de nossa cruel sociedade era algo a se pensar. Eles aceitaram passivamente que o bom velhinho tinha outros pequenos a receberem sua atenção.
E o Mestre Pioneiro pôde sair sem problema algum. Os membros do Grupo Escoteiro ficaram mais um pouco e, depois, todos foram embora gradativamente.
Tamanho drama não passara despercebido. As meninas do Grupo estavam em prantos. Os rapazes, cabisbaixos, estavam visivelmente perturbados ao verem de perto até onde a violência covarde contra as crianças poderia levar.
Até eu saí um pouco abalado. Já conhecia esse tipo de drama ao trabalhar no Fórum Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente, mas, vamos e venhamos, ninguém realmente se acostuma a isso.
Eis que vi, sentado na beira da calçada, o Mestre Pioneiro. Ele se afastara de todos e ninguém o tinha reparado. Fumava um cigarro.
Sentei ao seu lado e ele, um homenzarrão, Engenheiro de Petróleo, vindo das jornadas quinzenais em alto mar comandando dezenas de empregados brutos que trabalham doze horas por dia em turnos em que a força é exigida durante todo o tempo e contam com seu líder como exemplo de coragem, determinação e decisões tomadas, ele, com seu vozerio alto e alegre, mas justo e sempre muito ponderado… Aquele gigante que sempre foi alvo do meu respeito, chorou nos meus ombros.
E esse choro, o pranto sentido das meninas, a tristeza do choque de realidade dos rapazes, os gritos cheios de lágrimas de emoção daquelas crianças… Tudo isso fez o meu Natal ser inesquecível. Positivamente inesquecível.
* Engenheiro e Escritor.
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