Por Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Era uma vez... uma escola grande e famosa que eu devia visitar para verificar a regularidade dos serviços de escrituração na Secretaria Escolar. Eram visitas de rotina e
a instituição bem organizada; os prontuários dos alunos estavam completos e em ordem, os Diários de Classe com os registros em dia e os professores, compenetrados de suas obrigações, não tinham queixas. Mariana, a Secretária Escolar que, evidentemente, não se chamava Mariana, tinha sido minha aluna no curso de graduação e agora, na escola, mostrava-se uma profissional minuciosa e competente.
Como os recursos destinados à Educação sempre foram parcos, os professores se revezavam no provimento do lanche, na hora do recreio. A cada dia, alguém levava uma merendinha. Ora um bolo de aipim com coco, ora uma broa de milho ou então, pão caseiro, muxá ou rosca doce. Tudo sempre muito gostoso e farto. Nunca recusei a carona do lanche, participando do café, na sala dos professores, ao mesmo tempo em que conversava com eles sobre o trabalho, orientando ou ajudando a resolver dúvidas quanto à avaliação e aos registros, afinal, muitas delas eram ex alunas.
Durante uma dessas visitas, bem depois da Semana Santa, na sala dos professores, tomando café com broa de milho, a conversa enveredou pelas delícias da torta capixaba, cada qual desfiando sua receita pessoal, numa competição animada; até que se ouviu a palavra dendê. Imediatamente alguém fuzilou:” moqueca é capixaba o resto é peixada.” Aí o caldo entornou. Todo mundo falava ao mesmo tempo cada qual querendo provar sua verdade. Antes que o debate azedasse, tentei desfazer o imbróglio.
“- Gente, presta atenção, nós não precisamos viver discutindo isso. O prato de peixe que se faz na Bahia não é brasileiro é africano e sendo africano não pode ser chamado de moqueca porque moqueca é uma palavra indígena, derivada da palavra moquém da língua tupi.”
Na língua tupi, dizem o andarilhos que passaram por aqui, logo depois do descobrimento, o moquém era uma espécie de grelha alta, de varas trançadas, usada pelos nossos índios para preparar seus alimentos. Em baixo acendiam o fogo que devia ser pouco e ajuntado com lenha seca para não fazer fumaça nos diz o cronista.
Sobre o trançado de varas os índios colocavam as carnes e o peixes, estes com as escamas, só retiravam as tripas que junto com os miúdos iam diretamente sobre as brasas.
Em geral, o peixe se cozinhava lentamente, em cuia de barro, em fogo baixo e sem água; eis a moqueca, totalmente brasileira. Era consumida com farinha de pau ou o aypi, massa de mandioca mansa que se formava depois que a raiz era ralada e amassada em bolas, tudo temperado com sal e muita pimenta.
Nesse momento, depois de elogiar minha explicação, alguém me preveniu: ”- Interessante isso que você contou, mas tenha cuidado com o que oferecem aqui para você comer. Têm acontecido coisas estranhas...” e saiu rindo. Fiquei curiosa e então me contaram o causo da torta torta.
Dias antes da Semana Santa coubera à Mariana levar o lanche. Ela preparou uma torta capixaba no capricho, um enorme tabuleiro que se esvaziou rapidamente. Não chegou para quem quis. Reclamaram que era pouco e Mariana concordou em fazer outra para depois da Páscoa. Da segunda, bem maior que a primeira, também não sobrou nada. Quiseram saber a receita e Mariana, modestamente, disse que os ingredientes eram o de costume, nada de especial, palmito, mariscos, ovos batidos, e tal. Prometeu que na segunda feira levaria escrito. Prometeu e cumpriu.
A receita causou comoção geral! Quase um tsunami! Teve gente com taquicardia e tonteira, teve gente que vomitou até desmaiar, teve gente que quis bater em Mariana... O clima ficou tão tenso que a diretora e as pedagogas precisaram agir com muita firmeza para que as aulas transcorressem normalmente, sem que os alunos se inteirassem do que estava acontecendo. Naturalmente, quem ficou em pior estado, foi para casa ou para o pronto socorro. Nada de muito grave. Mas a indignação era geral.
Mariana se escondeu na Secretaria e se fingiu de morta, até que passasse a tempestade. Simplesmente não conseguia compreender a razão de tamanho reboliço, se dias antes só ouvira elogios aos seus dotes culinários e ao delicioso sabor das duas enormes tortas, que trouxera, devoradas em minutos...
Quando me mostraram a receita da torta, compreendi tudo. Ela começava, realmente, com os ingredientes tradicionais mas, em lugar do bacalhau, finalizava com 600g de carne de jibóia, cozida com todos os temperos e desfiada.
Nada extraordinário para Mariana, cuja família criava jibóias em sua fazenda, comerciava as peles e consumia a carne normalmente. E ela argumentava: “- Não tem gente que faz a torta com repolho e até com dobradinha?”
Só que ninguém esperava por ...filé de cobra. As pessoas de hábitos mais flexíveis levaram um choque, mas passado o susto, garantiam que o sabor era, de fato, delicioso... mas outras, nem podiam ouvir falar da torta.
Terminei meu café com a inocente e honesta broa de milho e voltei ao meu trabalho na Secretaria com Mariana, a salvo, atrás dos arquivos. Rimos muito da história, afinal ela produzira apenas uma variação cultural. Mas logo com carne de jiboia?!. Muita gente ficou de tromba e ela foi proibida de preparar lanches.
Há pouco tempo, já na Grande Vitória, encontrei Mariana trabalhando numa escola em Laranjeiras mas me esqueci de perguntar: Será que algum dia ela levou torta capixaba para o lanche?
*Ailse Therezinha Cypreste Romanelli
Cadeira nº 25 na Academia Feminina Espírito-santense de Letras
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