Por Guilherme Henrique Pereira*
1 de março de 1994: iniciado o Plano Real com o lançamento da URV (Unidade Real de Valor), uma moeda contábil, em paridade com o dólar (US$ 1,00 igual URV 1,) que nesta data estava cotado a 647,50 cruzeiros reais (CR$), moeda então vigente. Passava a absorver os aumentos de preços em reais. Foi nesta data que nasceu o Plano, que ficou conhecido como Plano Real. O Ministro da Fazenda da época era Fernando Henrique Cardoso, e o Presidente que teve a coragem de avalizar a proposta, bem como todas as críticas e inseguranças vivenciadas nos seis meses seguintes até, digamos, a estabilização da nova moeda, Itamar Franco. Esta “engenharia” é considerada o elemento diferencial dos Planos anteriores de combate à inflação e responsável pelo sucesso que foi obtido no estancamento de uma inflação acumulada de 12 meses, em 30 de junho de 1994, da ordem de 4992%.
Nos planos anteriores, decretados obviamente sem aviso prévio, surpreendendo segmentos que se consideravam com preço desatualizados. E passariam a forçar uma correção, muitas vezes cobrando um ágio, situação que se juntava à cultura da correção monetária dando vida curta ao congelamento de preços, voltando logo a inflação. A URV orientou o alinhamento por que todos, inclusive salários, tiveram os preços definidos naquela “quase moeda” algo aparentemente simples, mas, o principal determinante do sucesso do plano.
No ano de 1994, ainda vivenciamos de junho a dezembro, uma inflação de 74,8%; 1995, uma inflação de 22,41, daí caindo até 1998, quando chegou a 1,56%; volta a crescer até 2002, último ano de governo de FHC, quando alcançou 12,53%; mantém-se no nível médio de 5% nos demais anos, com dois “picos” de 10% em 2017 e 2021; e dois “vales” 1,65% em 1998 e 2,95 em 2017.
No dia 30 de junho 1994 a URV alcançou o valor de CR$ 2.750,00. Os brasileiros acordaram no dia 1º de julho de 1994 com uma nova moeda chamada Real, com valor unitário igual a uma URV. Logo todos os preços foram divididos por 2750, para serem expressos em Real. Todo tranco de críticas, incertezas e explicações coube a Rubens Ricupero, Ministro da Fazenda desde 30 de março de 1994, seguido nesta tarefa por Ciro Gomes, que assumiu em setembro. Assim, os políticos que deram sustentação para a equipe técnica, foram Itamar Franco, Rubens Ricupero e Ciro Gomes, FHC esteve presente apenas no planejamento inicial, depois em sua continuidade como Presidente. Mas vale dizer que no seu segundo mandato aceitou o risco do descontrole quando a taxa anual voltou a crescer.
Sair de uma hiperinflação para os novos níveis, é um sucesso indiscutível. Mas não podemos esquecer que a inflação no Brasil continuou alta, excetuando-se poucos anos de “vale”, quando comparada com as principais economias do mundo. Esta constatação nos leva a pensar que o Brasil tem outros desafios gigantes para enfrentar e que podem ter determinação relevante nos níveis de inflação que ainda hoje preocupam e absorvem significativa atenção dos governos. Com certeza a prática de taxas de juros elevadas e ampliação da desigualdade de renda, na verdade, resultante do comportamento dos preços e dos benefícios que o nível de taxa de juros concede para os rentistas. Não comentado pelos noticiários, mas, já bastante consolidado para parte significativa de economistas é a certeza de que taxas de juros altas por longo período, sinalizam inflação para os formadores dos preços que adotarão comportamentos defensivos, isto é, farão ajustamentos de preços buscando manter o valor do seus ativos e, principalmente, defender sua participação na geração total de lucros em um período considerado.
Também necessário lembrar alguns mitos para que as celebrações dos 30 anos não nos levem ao esquecimento dos desafios. Um deles é a sentença proferida de que a inflação prejudica os mais os pobres. Ora pobres não são detentores de ativos, especialmente na forma “dinheiro aplicado”. Os ricos, estes sim, possuem tais estoques de ativos que podem ser corroídos pela inflação. Por outro lado, representam a parte da população que tem poder político suficiente para influenciar políticas de governo que ao final permitem a defesa de sua riqueza da inflação, basta ver as políticas de juros altos e da rolagem da dívida pública. Poder político que os trabalhadores não detêm para forçar a correção dos salários. A diferença entre as duas categorias, portanto, não está no grau que a inflação afeta uma e outra categoria, mas no nível do poder político para defesa dos respectivos interesses.
Para concluir vale registrar outros dois mitos, agora ambos especificamente capixabas. O primeiro diz respeito a forte crítica que o Governador Vitor Buaiz quando em março de seu primeiro ano de administração (1995) concedeu 25% de aumento salarial, fato alardeado pela imprensa de ser o responsável pela quebra do governo. A realidade é que em 1994 a inflação foi muito superior: de junho a dezembro alcançou 74,8%; e 22,4% em 1995. Portanto, o aumento sequer repôs a inflação. A narrativa serviu para encobrir o aumento da renúncia fiscal relacionada às importações.
O segundo mito para capixabas diz respeito as importações. As empresas importadoras pressionaram o Governo com o argumento de que com o Real o benefício seria eliminado, pois o ganho se materializava com a inflação, posto que a renúncia fiscal se dava via empréstimos de 25 anos a juros irrisórios. O Governador Albuíno concordou em elevar o benefício de 7,4% para 9% do ICMS que recolhiam, devolvendo assim a totalidade da parcela que ficava com o tesouro estadual. Isto aconteceu em um período em que nas importações incentivadas por portos capixabas predominavam as entradas de automóveis, com valores globais da ordem de US$ 5 bilhões. Nesta época houve anos em que a renúncia fiscal ultrapassou 35% do ICMS arrecadado. Este, sim, foi um elemento significativo na determinação da crise nas finanças estaduais.
*Doutor em Ciências Econômicas, articulista, Professor, Gestor Público e autor do livro Economia, Governos e Suas Políticas.