Ester Abreu Vieira de Oliveira*
Manejar a linguagem escrita incrementa prestígio, e ler um livro nos faz sonhar, nos mostra que há saídas e que nem tudo está imóvel. Porém, ele não nos impõe idéias ou imagens ou histórias. Contudo, os livros imóveis na biblioteca gritam por leitores.
Sempre se atribuiu ao texto escrito um poder absoluto e um interesse em preservá-lo. Haja vista o decálogo escrito na pedra, que Jeová entregou a Moisés, bem guardado numa arca, com o maior respeito, dentro do templo.
Os textos escritos ficcionais conservam um ar sagrado de magia que os diferentes leitores, de maneira diversa, afetados pela “realidade” que eles contêm, procuram revelá-la, tornando o passado um presente eterno. Porque, ler é reviver o livro, é fazê-lo adquirir existência; é, também, possuir os signos de um código e pôr em movimento um sistema; é encontrar sentido e dar nomes a eles que, por sua vez, atrairão outros, numa cadeia circular.
Os livros são portas abertas para o sonho, em qualquer idade que se tenha acesso a eles, pois nos permitem elaborar um mundo próprio. Eles nos proporcionam conhecimentos e ampliam nossos horizontes.
Miguel de Unamuno, um escritor espanhol do final do século XIX e princípio do XX, confessou que colocar os pensamentos, os devaneios, os sentimentos no papel é matá-los, e a ação de ler, revive-os, e se faz eterna a obra: “Leer, leer, leer, vivir/ la vida que otros soñaron/ Leer, leer, leer,/ el alma olvida las cosas que pasaron”, canta esse poeta-filósofo.
Miguel de Cervantes, escritor espanhol do século XVII, é o autor da obra Dom Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), que está distribuída em duas partes. A primeira parte contém 52 capítulos, apresentada ao público em 1605; e a segunda, com 74 capítulos, lançada em 1615. A base da primeira parte são os livros de cavalaria lidos e interpretados por D. Quixote, enquanto a da segunda reflete a idéia que palpita de que a história de D. Quixote foi publicada, lida interpretada e continuada. Um exemplo é quando a Duquesa quer saber de Sancho Pança se D. Quixote era o personagem de uma obra que ela havia lido.
É inquestionável a importância desse livro para a História da Literatura, não pela história que conta, mas pela sua essência. São testemunhas do êxito alcançado por essa obra não somente a variedade de reimpressões e traduções, mas os vários estudos que ela proporcionou.
Transparente está para o leitor a intenção de Cervantes, em Dom Quixote de la Mancha, parodiar as novelas de cavalarias apoiando-se na obra medieval Amadis de Gaule. Essa função superficial é importante e se realiza por meio da ênfase que o escritor dá a esse fato, ao humor que provoca a paródia, e a comicidade das aventuras enfrentadas pelo protagonista. Contudo, Cervantes, indiretamente, nos explica o sentido profundo de sua obra, unindo teoria ou significação simbólica com execução artística, eliminando explicações diretas ou indiretas. E, nesse fazer, aproxima essa obra à arte contemporânea.
Para ler o Quixote, naturalmente, necessitamos aproximarmos de sua época, não só pelo código linguístico e historicidade do conteúdo próprio da época em que a obra foi escrita, mas também porque nela existem muitas referências a fatos, pessoas, obras, leituras, em fim, à vida da época do autor. Entretanto, a distância histórica, que, às vezes, dificulta a interpretação do leitor, pode ser abrandada se procuramos decodificar nossa leitura com base nas características formais do texto. A estética da recepção mostra que uma obra, no decorrer do tempo, traz novas e diferentes respostas para aqueles que a lêem, de acordo com a sua experiência e pensamento. Jorge Luis Borges, escritor argentino, afirma e teoriza que o diálogo é infinito que o livro estabelece com o leitor e Ortega y Gasset, por sua vez, diz que a obra se completa “completando a sua leitura”.
Do Quixote, vamos destacar as ações de ler que alguns de seus personagens exercem. Seja ao procederem a leitura da história do personagem D. Quixote e ou de livros de cavalarias, em momentos de ócio e na taberna.
A leitura, como produto valorizado, como função social e discriminadora do saber prévio de cada leitor, de sua experiência de leitura, é vista no Quixote desde o seu prólogo até o fim do livro, no último pronunciamento do narrador, quando ele alude ao término de sua empresa e aos leitores e escritores futuros que poderiam vir a profaná-la: “Aqui ficarás pendurada desta espeteira, ó pena minha, que não sei se foste bem ou mal aparada, e aqui longos séculos viverás, se historiadores presunçosos e malandrinos te não despendurarem para te profanar [...]’.
Mas o tema da leitura no Quixote é uma atividade ambígua já apresentada no prólogo da primeira parte: “Desocupado leitor, nem preciso jurar, que quisera que este livro fosse, como filho do entendimento, o mais formoso, o mais galhardo e mais discreto que se possa imaginar. Mas não pude contrariar a ordem da natureza; já que nesta cada coisa engendra seu semelhante. […]”
O protagonista do Quixote, Alonso Quijano, que passa a ser chamado de Don Quixote, é o protótipo do leitor. Há na obra um paralelismo entre as reações que o Quixote provoca sobre o leitor durante a sua vida e as que ele provocou sobre o conjunto dos leitores no desenrolar da história. Daí vem o qualificativo “ingenioso”. O Quixote é um livro escrito com técnica irônica. Por essa razão que Cervantes não conclui nada, ele deixa que o leitor tire por si mesmo toda espécie de conclusão. Cervantes propõe, insinua e o leitor dispõe. Essa obra é uma teoria do romance. Em todo o texto estão difundidas as idéias estéticas de Cervantes e, também, as filosóficas. Só a análise e uma leitura atenta fazem manifestar o pensamento cervantino. Ler essa obra de Cervantes nos coloca diante de um texto ideologicamente irônico, por isso, é muito difícil saber quando esse discurso é sério ou quando não é, quando há humor ou se é a idéia do autor que se manifesta.
Desde sua apresentação ao público o Quixote estimula a leitura e adquiriu fama, sendo traduzido em vários idiomas. Assim não é exagerada a afirmativa do personagem, Sansón Carrasco, na segunda parte, de que já haviam sido impressos mais de doze mil livros e que já era conhecido em Portugal, Barcelona e Valência e que no seu modo de pensar “não haveria nenhuma nação nem língua onde não fosse traduzido”. Muitos de seus personagens lêem ou escrevem. Lêem a história de D. Quixote e lêem livros de cavalarias, na taberna, e nos momentos de ócio. A leitura como prazer, reguladora dos processos anímicos, Cervantes anteviu, antes de Freud escrever Além do princípio do prazer, e apresentou a teoria das sensações concretas do prazer e desprazer, ligadas ao EU, pois ele deixa mostrar durante a leitura do Quixote ou na leitura e (re) leitura que o prazer em alto grau é perigoso para a afirmação do organismo diante das dificuldades do mundo exterior. Prova disso é o processo mental pelo qual passou Alonso Quijano, por não saber substituir o princípio do prazer pelo princípio da realidade. E, não conseguindo o equilíbrio necessário para a conservação do EU, passou a adotar outro EU o do Quixote, onde reinava o princípio do prazer, que será atingido somente por forças malignas, insólitas, produzidas por alguma magia. Um exemplo de um processo mágico de desprazer foi quando, na primeira parte, nos capítulos V, VI e VII, ocorre a narrativa dos acontecimentos que anteciparam e os que se pospuseram à queima dos livros da biblioteca de D. Quixote. Os seus amigos e familiares: o clero, o bacharel, a ama e a sobrinha incineraram quase todos os livros e fizeram uma parede fechando a porta da biblioteca, enquanto D. Quixote dormia. Ao despertar, verificou o desaparecimento de seu ambiente de maior prazer, e eles lhe disseram que o sábio Fristão havia levado os seus livros, resignadamente ele explicou que esse sábio encantador era um seu grande inimigo devido a conhecer que ele deveria ter uma grande batalha com um cavaleiro que era seu protegido e que o venceria, sem que ele possa com seus encantamentos evitar essa vitória.
A leitura afeta a vida de Alonso Quijano e de outros personagens que a valorizam, de acordo com a sua experiência de vida ou identificação com a história. Quando lia o nosso fidalgo? O narrador diz que lia nos momentos de ócio e que esses eram muitos durante o ano. Logo a sua vida era só ler e, mais precisamente, livros de cavalarias.
No princípio do século XVII, quase não se editavam livros de cavalarias. Todavia, Cervantes transfigura e enaltece esse gênero literário lendo a sua essência, a sua poesia para transladá-la à sua obra. Nessa tarefa ele purifica as narrativas desse gênero, completa-as e revive-as. Na primeira parte, cap. VI, há uma referência a cem livros grandes e muito bem encadernados e outros pequenos na biblioteca de D. Quixote, só sobre o tema da cavalaria. São os personagens secundários e o principal que valorizam o livro. No cap. L, na primeira parte, D. Quixote discorda da opinião do canônico e fala sobre livros impresso de cavalaria, sobre o prazer de lê-los e sobre o verossímil dos relatos, mais bonitos, “qualquer parte que se leia de qualquer história de cavaleiro andante há de causar gosto e maravilha a quem a ler”. Suas leituras “desterram a melancolia”, foram elas que lhe deram sabedoria e lhe moldaram o seu caráter..
Finalmente, para falar de livros e da magia que nos traz as ficções, não podemos deixar de relacionar a importância que Cervantes coloca nessa sua obra máxima. Ele oferece ao leitor uma mostra da importância da leitura e escrita de uma obra, na própria organização da narrativa que é produto de traduções e releituras de Cide Hamete que ao se manifestar no último capitulo da obra escreve: “Só para mim nasceu Dom Quixote, e eu para ele. Ele soube praticar feitos e eu escrevê-los” e, na caracterização do herói como apresenta no primeiro capítulo descrevendo seus gostos, hábitos e familiares, seu nível social, sua idade, seu físico e seu nome e a seguir apresenta a obsessão do protagonista pela leitura e as conseqüências dessa no seu comportamento, ou seja, faz a interação entre texto e leitor.
*Presidente da AEL - Pertence à Cadeira 27
Patrono Afonso Claudio