Por Ester Abreu Vieira de Oliveira*
Dr. João Batista Herkenhoff, um jurista imortal das letras, pois pertence à Academia Espírito-santense de Letras, em A Gazeta de 03 de setembro de 2002, na Sessão Opinião, com o texto "Ternuras e paixões", declara o amor por obras literárias:
Eu a torço, primeiro com ternura, depois com sofreguidão. Acaricio seu dorso quente, que é sempre uma promessa. Mal contenho o ritmo da respiração, na volúpia do momento que se antecipa. Ocorre-me Camões, pois outros sete anos eu serviria para desvendar seus universos: "Sete anos de pastor Jacó servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela./ Mas não servia ao pai,/ servia a ela,/ que a ela só por prêmio pretendia."
Não estou a desvelar com carinho o rosto da mulher amada, não estou a buscar seus caminhos infinitos. Estou a sentir com doce afeto a lombada da obra literária, estou a viajar pelo enigma de suas páginas. Para quem ama a leitura, o livro jamais será uma coisa, um objeto, mas o destinatário de uma paixão ardente. [...].
Nesse “erótico” texto o iminente jurista capixaba, pondera sobre o valor do livro:
Se, segundo Dante, na aceitação literal de uma verdade preexistente, os livros e a escritura são os índices expressivos dos mais elevados momentos poéticos e humanos;
Se o livro é considerado divino, ele se torna o símbolo da salvação e do valor supremo, pois nele estão os Códices que regem as sociedades, as Medidas Provisórias, os Dicionários, a Bíblia, o Alcorão, e os Livros literários;
Se todo o existente é obra de Deus, Deus é o verdadeiro autor dos livros, já que, ao falar com Moisés, Ele ditou os cânones, anunciou a verdade e a escreveu numa pedra, onde as palavras de ordem permaneceram, tornando se Ele o primeiro escritor e editor de livros.
Assim, falar em livros implica em apresentar um universal extraordinário: como a fabulosa Biblioteca de Alexandria ou como a fantástica “Biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges. Neles se encontram os atlas e as enciclopédias, em cujas páginas se reúnem mundos e ciências, reina a interdisciplinariedade da humanidade e se busca a solução de uma dúvida, dialoga-se com as palavras e as fronteiras se abrem. Mencioná-los é confirmar que eles contêm elementos que estimulam o desenvolvimento da capacidade de imaginação e possibilitam uma intimidade com a linguagem simbólica, pois a nossa sociedade está rodeada de símbolos e precisa de imaginação que facilita a inovação.
O poder do livro é tanto que um bom livro estimula a criação de outros. García Márquez em Cem anos de solidão se apoiou no Primeiro Livro da Bíblia e há obras, como A Divina Comédia, Os Lusíadas, Don Quixote que, em suas estruturas, em seus personagens, situações e discursos, têm um vínculo com outras obras do passado, de gêneros diversos.
Nos livros encontram-se textos literários ou signos, que privilegiam a mensagem. O interesse desses textos está no modo pelo qual se combinam os diferentes elementos da língua para dar a impressão de beleza, sempre de acordo com os cânones da estética. São nos textos que o escritor brinca com a linguagem, transforma um verbo transitivo em intransitivo, se lhe convier, transgride normas gramaticais, dando vôo à imaginação, reforma a sintaxe, recria palavras, como fez o filósofo Hedegger, em "Sobre a essência da verdade", introduzindo a palavra errância, para conceiturar erro (falta de verdade).
Não se deve esquecer que o descobrimento da verdade consiste, antes de tudo, em aceitar as verdades tradicionais e, depois, em concordar, racionalmente, com os textos autoritários, os canônicos. Michel Foucault, em As palavras e as coisas, lembra que, na ampla linguagem dos mundos, seres diferentes se ajustam uns aos outros, a terra se ajusta ao mar, as plantas, aos animais e o próprio homem se combina ao que o rodeia. Ajustam-se os seres para conviver. A simpatia é um processo que suscita o movimento das coisas, fazendo-as integrarem-se ao todo, sem perder a sua individualidade. E, na organização genérica da obra literária tem-se em conta a relação entre o mundo ficcional e o mundo real, pois a maneira como for feita essa aproximação influirá na recepção do leitor, no sentido em que oferece um ponto de vista sobre a sua situação e o leva a interrogar-se sobre a sua vida.
Os dados antecedentes de uma obra literária não são exclusivamente literários. Tomamos como exemplo dessa afirmativa o ponto de arranque de Federico García Lorca que, para gerar a sua obra dramática Bodas de sangue, partiu de uma notícia de jornal, discurso diferente do gênero de sua obra. Graça Aranha escreveu o romance Canaã, a partir de um processo jurídico, ocorrido em Santa Tereza. E Francisco Carnelutti gerou As misérias do Processo Penal, a partir de um evento social, uma tourada. Também Flaubert, Machado de Assis, Graça Aranha e García Márquez, citando alguns escritores, recorrem a outras ciências, ao criar suas obras com discursos diferentes do literário. Eles os transformam com habilidade artística em palavras. Quando os reproduz, põe sua imaginação, e pincela sua vivência e o seu conhecimento do mundo. Sobre essa atitude, explica-nos, o poeta português Fernando Pessoa em "ISTO" :
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração. [...]
Por fim, um escritor pode apoiar o seu discurso ficcional na Ética, na Bioquímica, na Psicanálise, na Sociologia, no Direito, e ou na Literatura. Em sua atuação pode recorrer a um fato social, a uma obra literária, ou a alguma ciência, porque na ciência o escritor busca a essência. Ele modela um motivo e o transforma para desenvolver o seu tema. Quer seja o tema da inocência, do crime, da água, do amor, do olhar, dos olhos verdes, do julgamento, do opróbrio, de um vicio em geral, da prisão, do ódio, da vaidade, de qualquer arquétipo da humanidade. No “enigma de suas páginas” o escritor conquistará a alma daquele que ama a leitura e o torna “o destinatário de uma paixão ardente.”
*Ester Abreu Vieira de Oliveira
Maio de 2025